Três anos e alguns meses após o primeiro encontro do Coletivo, temos nos perguntado com freqüência qual é a repercussão das nossas discussões e ações na nossa forma de estar e de pensar dentro da capoeira. Alguma coisa mudou na nossa forma de estar nos nossos grupos? As discussões propostas pelo Coletivo têm atingido os integrantes dos nossos grupos e de outros grupos de capoeira nas cidades nas quais o Coletivo atua? Até que ponto é apoiada e levada a sério a nossa iniciativa de problematizar o estado das coisas? - não no sentido de criar problemas, mas no sentido de pensar a realidade que, às vezes, aceitamos sem refletir. A crítica, sabemos, leva à atuação consciente, à criação de alternativas e à possibilidade de escolher o que queremos para nós e para os que convivem conosco.
Vou falar por mim. Desde os primeiros encontros que tivemos, para mim sempre foi positivo aprender com outras mulheres angoleiras que sabiam mais do que eu. Numa arte como a capoeira, que se aprende pela escuta e a observação, é reconfortante ver corpos de mulheres se movimentando na roda (com ritmo, equilíbrio, força...) e vozes agudas cantando ladainhas e corridos. Ter exemplos femininos de como fazer as coisas ajuda para o teu corpo e voz de mulher encontrar o seu jeito de fazer também.
Muitas vezes os capoeiristas e as capoeiristas recriminam as mulheres que imitam os homens para crescer na capoeira. Eu pergunto: Se o que mais há são líderes masculinos, não é normal que todo o mundo os imite? Todo o mundo, quero dizer homens e mulheres. E, atenção, digo que é normal, não estou dizendo que é a única forma ou a melhor de desenvolver-se na capoeira. A imitação e repetição é uma parte do aprendizado dos movimentos e cânticos. Quando um homem imita os movimentos e atitudes do seu mestre, está tudo bem; quando uma mulher o faz, já pode haver críticas ou estranhamento. Aliás, há instrutores de capoeira, homens, que não fomentam que as suas alunas desenvolvam esse lado "masculino", por exemplo, não exigem tanto delas (não exigem movimentos que exigem mais treinamento, não exigem que toquem instrumentos, que saibam tomar decisões numa roda, que saibam cantar uma ladainha). Eu, por sorte, tenho dado com professores que não "cortaram as minhas asas" e que exigiram igualmente de uns e outras. Também eu não iria ficar acanhada com alguém que quisesse me "proteger" de atitudes impróprias de uma menina. Mas penso que outras mulheres que amam a capoeira e dedicam muito tempo a ela têm que conviver com as contradições de querer fazer parte de uma arte que se diz libertadora e igualitária e, por outro lado, vivenciar situações de discriminação.
Sei que a palavra discriminação tem uma carga muito forte. Mas, observem: a palavra discriminar significa "diferenciar, distinguir, separar". E sabemos que existem dentro da capoeira crenças sobre as diferenças entre homens e mulheres, por exemplo sobre o que as mulheres podem e não podem fazer. As crenças não são verdades e nem posturas individuais, são criações coletivas que cada indivíduo da sociedade, com as suas ações, ratifica ou contesta. Nós mostramos as nossas crenças com as coisas que fazemos e dizemos. Eu sugiro sempre, quando se discute, por exemplo, o que é ser feminina na capoeira: por quê não olhamos para a pessoa que temos à frente, antes de mais nada? Podemos estar diante de um corpo de mulher com uma facilidade especial para a música, podemos estar diante de um homem com dificuldades para executar certos movimentos, podemos estar diante de uma criança muito experta, de uma anciã com muita experiência na vida, de um homem muito fraco, de uma mulher arrogante, de uma menina agressiva, de um homem manhoso... todas essas diferenças e qualidades passam por corpos de pessoas, independentemente de serem homens ou mulheres. Pessoalmente, acho muito mais enriquecedor enxergar a aluna e o aluno, o colega ou a colega com quem vamos jogar, como uma pessoa que vai nos mostrar diferentes qualidades, que pode com certeza desmontar as nossas expectativas e fazer que a gente aprenda alguma coisa.
Dizia antes que é normal que homens e mulheres imitem os seus professores e mestres (até há pouco tempo, só homens, agora cada vez mais mulheres) e que a imitação é uma parte importante do aprendizado da capoeira. Por isso não acho criticável que as mulheres imitem os movimentos e atitudes dos homens que as ensinam. Más também acho que há outras formas desenvolver-se na capoeira, porque a imitação é apenas uma parte do aprendizado. A transformação e a criatividade é outra parte fundamental. O quê seria da capoeira se todo o mundo jogasse igual? A sua riqueza está nas possibilidades de surpresa e de diferença que oferece cada corpo e cada personalidade.
E foi vendo outros corpos de mulher já experientes nesta arte que aprendi que o meu corpo de mulher vai ter que ir desenvolvendo os seus movimentos, que não são os movimentos do meu professor, que não são os movimentos de outros colegas, nem os de outras mulheres capoeiristas, mestras, professoras, alunas antigas, não: são os movimentos do bichinho diferente que sou eu, às vezes um macaco, às vezes uma cobra, às vezes um sapo... então estou sempre procurando ouvir o meu macaco, a minha cobra, o meu sapo, sem que um corpo de homem ou de mulher me diga o que posso ou não posso fazer com o meu jogo, com a minha voz... sempre respeitando e admirando aqueles e aquelas que entregaram os seus corpos a esta arte poderosíssima, para libertar lindos macacos, sapos, cobras, siris, caranguejos, pombas, canários e gaviões.
Então, será que nós, na capoeira, libertamos o nosso bicho ou continuamos sendo as mulheres e homens que a sociedade na qual vivemos quer que sejamos? Será que só podemos ver corpos de homens e mulheres? Homem forte, veado, mulher branca, guri mulato, sapatona, mulher branca, mulher negra, moça bonita, velho gordo, criança... será que só conseguimos enxergar isso quando ensinamos um movimento, quando apertamos a mão de alguém na roda, quando vamos passar um instrumento, quando olhamos para nós próprias? A sociedade capitalista e de consumo tem poluído muito as nossas crenças, não podemos deixar que essas simplificações nos ceguem, se acreditamos a sério que a capoeira pode transformar e transforma a sociedade.
Qual é o caminho que temos andado com o Coletivo? Eu espero que, com as nossas ações públicas e os nossos encontros, tenhamos libertado um pouco os nossos bichos e tenhamos conseguido que os nossos professores, as nossas colegas e os nossos colegas da capoeira, tenham descoberto que somos todas e todos siris do mangue, canários cantadores, cobras corais e pombas voadoras, e não apenas corpos de homens e mulheres, para poder levar essa mensagem à sociedade, no nosso dia a dia.
Saudações, minhas lindas e meus lindos.
Viva a capoeira!
Maria de Lisboa.